Trilha John Muir - Paulo Miranda

Sierra Nevada/EUA   agosto/2002

Sierra Nevada/EUA   agosto/2002

Ir pelo simples prazer de estar lá

07.08.2002

Sem querer filosofar a respeito do tempo, é possível perceber, nesse exato momento em que a véspera do dia da partida está se tornando passado, o quanto o tempo é relativo. Olhando por trás dos ombros e visualizando cada um dos dias que compõem os quase dois anos de maturação da idéia e os seis meses de planejamento desse Projeto, vejo claramente que o tempo passou como num piscar de olhos. Saboreio esse meio caminho trilhado, mesmo faltando ainda partir e caminhar e voltar... Atingir o final da trilha é muito importante. Afinal o ser humano não vive sem objetivos. Mas o fato de estar no caminho, de estar realizando algo que se quer muito, construindo cada dia a seu tempo e em seu ritmo, é um momento único. Tão ou mais importante e prazeroso do que atingir essa ou aquela meta, porque pressupõe estar em ação. Estar fazendo o que se gosta é como "uma tomada de vida" como li num artigo do Arnaldo Jabor outro dia (o sentido usado pelo autor foi um pouco diferente, portanto Jabor, não repare não!). Não só não resisti em anotá-la como tinha que achar um lugar para usar essa expressão, mesmo que fosse preciso fazer um relato só por causa dela. 

Acredito que, num mundo mecanizado com lógicas completamente sem razão de ser, poucas atividades e realizações dão sentido real à vida, muito além das filosofias e pensamentos. John Muir escreveu que "um dia nas montanhas vale muito mais que uma montanha de livros": eu concordo plenamente com essa afirmação. Estar nas montanhas, em meio àqueles gigantes de rochas e formas vivendo sua vida de milênios; abraçados pela energia brutal do vento; sentindo a chuva molhando o corpo e lavando a alma; testemunhando o eterno renascer do sol a nos chamar de volta à vida depois de uma noite de tempestade... tudo isso nos faz perceber a realidade nua e crua, e por isso mesmo verdadeira e intensa, da nossa existência. Expostos a um Planeta que se destrói e se reconstrói durante momentos sutis e explosões de força, numa constante e eterna mutação de suas formas e de sua beleza, percebemos a real dimensão de nosso ser, sem máscaras, frágil, transitória, porém concreta, muito além das futilidades dos tempos modernos.

Essa beleza pura do Planeta Terra, imune a conceitos e teorizações, está à nossa espera em cada curva do caminho, em cada gota de orvalho sobre uma folha, em cada vulcão que entra em erupção, em cada onda que explode na costa ou em cada geleira que se move. Está em todos os cantos do mundo, que são muito mais do que os quatro que nossos antepassados imaginaram ser. Precursores esses imbuídos, como legítimos exemplares da espécie, de uma característica exclusivamente nossa: a curiosidade de saber o que tem do outro lado da montanha ou do mar pelo simples prazer de conhecer e não só por sobrevivência. A mesma característica presente nos homo erectus ao saírem da África em sua expansão pelo mundo há mais de 300 mil anos; quando, depois de cruzarem o Estreito de Bering (ou o Oceano Pacífico, depende de qual teoria você aceita) os asiáticos atingiram o continente americano; quando os europeus lançaram suas naus aos mares do Renascimento; quando Amundsen tocou o Pólo Sul e Hillary e Norgay o topo do mundo. Ou quando cada um de nós parte numa simples viagem a qualquer lugar pelo simples prazer de lá estar e ver o que tem para ser visto. Não há nada mais exclusivamente humano do que isso. "O homem precisa tanto de beleza quanto de pão" (John Muir, The Yosemite, 1912), pois sem os dois, não sobrevivemos.

A mochila, cheia e encostada no canto à espera de um detalhe ou outro, indica a iminência da partida. Que lembra espera em aeroporto, a horrível comida de avião que eu adoro, encontros, despedidas, expectativas e surpresas. Daí a entrar na fase de futurologia, quando se tenta imaginar como será esse ou aquele momento da viagem é um pulo. E altamente frustrante, pois nada acontece como sonhamos quando estamos acordados. Diante dessa constatação, volto a saborear o que já foi feito e a esperar, de coração e mente abertos, tudo o que a partida nesta quinta-feira trará dia-após-dia. Então... até a volta, se Deus quiser!